Japão, uma dicotomia.

”Não tem como iniciar um texto sobre o Japão em que devemos pensar antes de imaginar, sem que relate minha própria experiência em relação ao país do sol nascente.

Era um menino ainda quando vi na parede de casa um calendário, folhinha, como se dizia antigamente, oferta talvez da padaria em que comprávamos pão. Lá estava estampada a foto de uma moça de quimono sobre um fundo com uma linda paisagem japonesa.

Aquela imagem me tirou toda a tranquilidade por muito tempo.

Consegui descobrir o nome da modelo. Era Asaoka Ruriko, uma atriz que costumava fazer dupla com Ishihara Yujiro, cantor e ator de sucesso.

Passei a frequentar o Cine Joia na Liberdade, onde passavam os filmes da dupla. Ao mesmo tempo entrei para o nihongaku da CAC, Cooperativa Agrícola de Cotia. Eu era um adolescente e o único não descendente da turma. Outro diferencial é que eu ia de livre e espontânea vontade às aulas, enquanto os outros eram obrigados pelos pais. Daí a dedicação que a sensei tinha comigo.

Bem, devorava tudo o que dizia respeito à cultura japonesa, teatro, pinturas, música, filmes, História, etc..

Casei-me com uma moça nissei. Durante décadas permaneci no Brasil exercendo minha profissão, mas acabamos decidindo que era chegada a hora de ir ao país, principalmente depois de conhecer o irmão de uma amiga que fora passear no Brasil, após 14 anos morando no Japão. Ele era professor e acabou me incentivando a dar aulas e ajudar as crianças brasileiras, segundo ele, muito carentes.

Embarcamos com um visto para trabalhar por pelo menos um ano numa padaria, após o que, estaríamos livres para procurar uma escola para lecionar.

Fascinamo-nos pelas diferenças, todas positivas, ao chegar. As ruas eram limpas, os carros andavam devagar, paravam nos faróis para atravessarmos, as pessoas ao esbarrarem se desculpavam, etc.. Uma vez esqueci minha bolsa na cestinha da bicicleta e só me dei conta meia hora depois. Mas ela estava ainda lá intacta.

Quando se está maravilhado com algo, custamos a ver defeitos. Como quando nos apaixonamos. Era como se o Japão fosse um país sem defeitos. Mas o trabalho na fábrica foi me mostrando que havia sim diferenças não muito significativas.

Percebi que os funcionários fixos japoneses, os shain, eram muito folgados e sobrecarregavam os brasileiros. Descobri que eles recebiam bônus ao final do ano, enquanto nós ficávamos a ver navios.

Tivemos que trabalhar, todos nós, brasileiros, na passagem do dia 31 para o 1° de janeiro, sem poder comemorar o ano novo, enquanto os japoneses tiraram folga.

Descobri que duas coisas a que estava acostumado no Brasil, férias e 13° (útil para trocar de carro ou viajar) simplesmente não existiam.

O yukiu era só de 10 dias não necessariamente corridos.

A legislação trabalhista brasileira era realmente avançada, mas só me dei conta depois que não mais a tinha.

Ao comentar isso com um brasileiro, ele me disse: ”por isso que o Brasil não vai pra frente. É muita mamata”. Pode?

Ao me acidentar por condição insegura (chão molhado), fui levado ao hospital com o tantousha me ameaçando, dizendo que eu tinha de dizer ao médico que o acidente não fora dentro da fábrica, senão levava kubi. Até aí concordei. Mas depois que me disseram que eu teria que pagar 30% do atendimento médico e dos remédios, do próprio bolso e ainda teria os dias parados descontados, tive que ameaçar voltar ao médico e contar-lhe a verdade.

Foi aí que meus olhos se abriram e passei a ver um outro lado, mais desagradável.

Trabalhava como opereta em um forno. Quando o brasileiro que operava o forno do lado saiu, mandaram-me operar os dois fornos. Quando o japonês que operava um terceiro forno foi transferido, puseram-me a operar três fornos! E tinha que dar conta.

Completamos o ano e saimos. Procurei uma escola para lecionar, onde estamos até hoje, felizes por ensinar aos brasileirinhos tão carentes que vivem no Japão.

Foi só aí que descobrimos que as crianças, filhas de brasileiros, que nascem no Japão não podem ser registradas como japonesas. Como assim, cara-pálida?

Ficou claro que brasileiro só é bom para trabalhar, cumprir seus deveres como CIDADÃO, mas não é bom para desfrutar plenamente a CIDADANIA.

Descobrimos também que os alunos da escola eram realmente muito carentes. Tinham i-phone, games, tênis de marca, mas não tinham o principal: diálogo com os pais, afeto, carinho, ajuda…

Obrigados a fazerem horas extras para completar o orçamento doméstico, os pais desses meninos simplesmente não tinham tempo para eles. Chegavam cansados em casa e só queriam descansar. Isso afeta bastante o desempenho escolar pois há uma lacuna de educação que a família teria que proporcionar aos filhos.

Já os japoneses podem ter mais tempo dedicado aos filhos, pois ganham mais.

Fizemos amizade com japoneses, mas percebemos que não há o mesmo calor dos brasileiros pois o formalismo nunca deixa de existir, além do fato de que sobre certos assuntos não se conversa.

Então, há que se tornar meio contorcionista para conversar com japoneses. Por exemplo, se ele perguntar se você conhece a História do Japão, talvez seja melhor dizer que não, pois se você disser que conhece, ele vai lhe perguntar o que você acha. Como a História do Japão é feita de muitas guerras civis, se você criticar justamente esse fato, perde o amigo.

Os japoneses detestam que você faça uma observação de desagrado a algum lado de sua cultura. Jamais critique a matança das baleias e dos golfinhos!

Talvez seja por isso, aliado a dificuldade com a língua, que os brasileiros prefiram conviver entre si.

Incomoda-me particularmente o fato de que, em restaurantes a atendente sempre se dirige à minha esposa, embora eu entenda mais japonês que ela. Se estou sozinho, tentam se comunicar naquele inglês que chamo de katakanês. Pode falar em japonês, respondo.

Uma das coisas que me chamou a atenção no início de minha jornada no país foi ver que as próprias pessoas limpavam as calçadas e mesmo as ruas. Muito legal. Ao mesmo tempo, fiquei com uma dúvida intrigante: então, parte dos impostos que pago não vão para a limpeza pública de ruas, um serviço que custa muito caro?

Foi então que passei a questionar o destino de meus impostos.

Moro em uma cidade com uma população pequena: 117 mil pessoas, dados de 2008. Porém, a prefeitura está organizada em 3 enormes prédios. A polícia, que tem pouco a fazer, se localiza num prédio também muito grande para o tamanho da cidade.

Há, portanto, uma burocracia e uma máquina muito inchada. Os impostos são altos e, ao contrário do que muitos brasileiros pregam, por ouvir dizer, são bem mais altos que no Brasil.

Dirão (sempre dizem): ah, mas no Japão os impostos são bem aplicados, tudo funciona.

Vamos ver.

No Japão a saúde não é pública. Desconta-se do salário, mensalmente, um seguro saúde (shakai hoken para a maioria), que serve como um plano de saúde pago ao governo.

Mas, ao contrário dos planos, para qualquer procedimento, há que se complementar com 30% do valor cobrado. Argumentarão: ah, mas funciona. O nível não tem nada a ver com o do Brasil. Também há falta de informação quanto a isso. Conheço várias pessoas no Brasil que já desistiram de planos de saúde simplesmente por não funcionarem, e migraram para o tão mal afamado SUS. E gostaram! Lógico que não funciona a contento em muitas partes do país, mas há também hospitais que estão se revelando muito bons.

As consultas não demoram tanto para serem marcas, os procedimentos são bem executados e os remédios…de graça!

Porém há muito que melhorar ainda, mas pelo menos é público.

No Japão a educação só é pública até o nível fundamental. Há escolas de ensino médio públicas, mas são poucas e muito concorridas e as particulares são muito caras, por isso, os brasileiros muitas vezes param de estudar depois de concluido o fundamental, ou migram para escolas brasileiras.

Muitos japoneses também param de estudar por não conseguirem pagar.

As faculdades são particulares e caríssimas. E quem terminou a faculdade utilizando o crédito estudantil, vai ter que começar a pagar. Por isso, vai entrar no primeiro emprego que aparecer. Mas, mesmo que a escolha não tenha sido a mais certa, mesmo que se arrependa depois, muito provavelmente vai ficar na empresa até completar 65 anos, quando se aposentará compulsoriamente. No Japão, quem muda de emprego é mal visto e não consegue segunda chance facilmente. Lógico, isso não vale para trabalhadores brasileiros em fábricas.

No Brasil há ensino público. Pode não ter a mesma qualidade do japonês, mas é público.

Além disso, o ENEM possibilita que o aluno ingresse numa faculdade particular com mensalidade paga pelo governo.

Para sustentar saúde e educação públicas num país com proporções continentais, tão cheio de desigualdade social como o Brasil, há que ter fôlego. Não é uma coisa fácil.

Ouço gente dizer que o transporte público (sic) japonês é perfeito. Concordo que é quase perfeito, mas é transporte de massa, não é público. É privado. E caro.

As estradas são perfeitas. Pudera, os pedágios são altíssimos. Nada mais natural.

Então, embora com muitas dificuldades, eu sei que os impostos menores que eu pagava no Brasil iam para a coisa pública.

Que não venham falar da roubalheira, pois esta deve ser tratada como crime e tem que representar uma exceção e punida. Mas pelo menos é investigada, sai nos jornais e está sendo punida.

No Japão, alguém sabe de alguma coisa? Ou não se pratica corrupção? Serão todos seguidores de Madre Tereza de Calcutá? Ou será porque se esconde? Será porque a NHK, a Globo do Japão é estatal e não fala contra o governo?

Recentemente vi umas imagens aéreas tomadas por um drone, se não me engano, do Canadá, sobre a usina nuclear de Fukushima. Milhares, talvez alguns milhões de sacos de lixo pretos, cheios de solo radioativo. Tratores limpavam a área para abrigar mais sacos ainda. Qual seu destino? O que o governo pretende? Nada é divulgado.

Enquanto isso, flores já estão nascendo deformadas. Mas a população pode ficar tranquila porque assim o governo Abe quer.

E quem fornece a mão de obra para os trabalhos na usina? Se você quer uma denúncia de corrupção da grossa, aqui vai: a máfia. A yakuza fornece ao governo a mão de obra necessária. Gente que precisa pagar dívidas com a máfia. Ok? Não sai na mídia japonesa,só sai na internacional.

À esta altura, todos já deverão estar perguntando se a minha visão antiga, romântica, do Japão acabou. Não, claro que não.

Apenas minha visão hoje é mais realista. Compreendo que minha opinião totalmente negativa do Brasil mudou um pouco para melhor e também que a idolatria pelas coisas japonesas diminuiu um pouco por perceber que qualidades e mazelas existem em todos os países, uns têm mais, outros menos.

E antes que me mandem vazar, esclareço que o que me mantém ainda hoje aqui é o meu trabalho com o qual estou sempre cada vez mais identificado.

E como todo CIDADÃO, pois é isso que me considero ao respeitar as leis do país, ao pagar os impostos do país, ao fazer silêncio em minha moradia, ao ser cordial com as pessoas, ao não jogar lixo nas ruas, ao trabalhar para melhorar o nível de conhecimento dos brasileirinhos que aqui vivem, tenho o direito de também fazer as críticas que acho necessárias e que muitos negam.

Ainda gosto muito do país, mas é certo que se aproxima o dia de vazar, digo, retornar.”

Fernando Castilho, Japão.

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